Às vezes, apetece-me largar tudo da mão e voltar para casa pelo caminho mais antigo, o caminho que o tempo apagou, e morrer lá sozinho. Dito assim, de chofre, ainda por cima no arranque do ano, parece uma coisa má, terrivelmente pessimista. No mínimo, parece coisa de pessoa deprimida, desiludida, perdida, completamente lixada com a vida. Mas não, não é. Até porque nenhuma confissão poderá, nem deverá, jamais ser encarada como uma substância má, uma doença, uma fraqueza. Antes pelo contrário. Qualquer confissão, independentemente do género e da intensidade, é a melhor forma de afirmação do indivíduo perante si e os outros e também constitui o trilho mais seguro de reaproximação ao nada primordial que assinala a sua presença na vida e no mundo – o grau zero da existência, o princípio da viagem.
O problema, meus amigos, é que viver no paraíso também cansa e arrasta pensamentos sombrios. Sejamos sinceros: ainda que não nos falte nada, volta e meia parece que entramos no inferno e agimos como se estivéssemos a pisar um chão em brasa e a respirar enxofre em vez de oxigénio.
Tudo o que nos rodeia passa a ser a representação do inferno, seja lá o que for, mesmo as coisas mais belas, por exemplo, o mar a bater agora nas pedras da Praia Formosa e o vento que traz este delicioso aroma a lenha vindo não sei de onde e o sol escondido atrás das nuvens e o ar frio que me enche de tristeza, uma tristeza plúmbea como o oceano, infinita como o oceano, inexplicável como o oceano, e aquele casal de turistas à procura de arte na praia, pedras em forma de coração, pedaços de madeira a lembrar animais pré-históricos, plásticos como se fossem fragmentos de naves espaciais, também eles são componentes do inferno, bem como este pombo cinzento que acaba de aterrar ao meu lado na esplanada e a cerveja sobre a mesa e o pires com tremoços cintilantes e toda a minha escrita nesta hora, tudo, tudo é o inferno.
De facto, às vezes, penso e sinto que só me falta cumprir o dinheiro e o horror para completar a minha existência à face da Terra. Ou seja, meto na cabeça que só me falta ter ouro, muito ouro, ouro a rodos para gastar no que me der na veneta, nem que seja por um brevíssimo período, sei lá, um mês, meio ano, uma coisa assim, o tempo necessário apenas para saber o que isso significa na vida de um homem – ser estupidamente rico – só isso, e, por outro lado, às vezes fico também a matutar que seria bom conhecer o Mal em estado puro, o verdadeiro Mal, o Mal que mata inocentes de propósito, vê-lo em plena ação, tratá-lo por tu, nem que fosse por um curto instante, um par de horas, meio dia, como uma escala em cidade desconhecida durante uma viagem de longo curso, só para perceber a real dimensão do seu ser.
Dito assim, parece um sinal de loucura ou, na melhor das hipóteses, uma marca de azedume e ingratidão. Um homem como eu a pedir uma coisa destas! Onde é que já se viu? Não se compreende. Porra, a mim não me falta nada! Vivo no céu e tenho as mãos brancas, finas e delicadas, tão diferentes das mãos do meu pai, que eram brutas, rudes e encardidas, repletas de calos, cicatrizes e inscrições de fome, pobreza e violência. Como posso, então, pôr-me aqui a perorar esta filosofia da treta, a dizer que só me falta o ouro e o horror para completar a existência?! Que estupidez!
Mas não, não é estupidez. É apenas o lado negativo do pensamento, o lado do pesadelo. Só isso. E esse lado constitui uma das extremidades da vara que me mantém equilibrado na corda bamba da vida. Na outra extremidade, ficam o sonho e a esperança. Pois claro! De um lado sonho e esperança, do outro negativismo e tormento. De modo que, estando eu no meio, posso caminhar à vontade sobre o abismo.
Portanto, se me perguntarem o que trago hoje aqui, que texto é este, que palavras são estas, eu direi:
– São rosas, meus amigos! São rosas!