O romantismo já não é possível. Não é. Digam-me lá como pode um gajo, hoje em dia, largar o emprego sem mais nem menos e ir para fora de mãos a abanar, ao Deus dará, andar pelo mundo à toa sem pensar em dinheiro, como um vadio, viver numa espelunca, dormir ao relento, passar fome e escrever? Digam-me lá como é que um gajo no seu juízo perfeito pode fazer uma coisa destas? Não pode. Não é possível. Em tempos foi, mas agora não. Agora, é coisa de loucos. Ou, se calhar, sempre foi coisa de loucos.
A vida é um ensaio para sonhos exequíveis, mas sempre impossíveis de realizar, de modo que, da minha parte, limitei-me a ficar onde estou e já cá estou há tantos anos, tantos que até perdi a conta. Dizem que escrevo umas coisinhas boas, mas para mim não valem um chavo. A única coisa que consigo ver com clareza é a forma como as pessoas se anulam e vangloriam e isto conduz-me todos os dias ao beco sem saída da existência.
Eles aqui fartam-se de me meter medo. Dizem que tenho de trabalhar sem fim, lutar e lutar, dizem que tenho de encarnar o perfil do guerreiro capitalista – vejam lá! –, dizem que tenho de acreditar no que faço e fazer mais, mais, mais, cada vez mais, por mim e por eles, sobretudo por eles – puta que os pariu! – e eu a pensar na viagem e na distância – ah, grande romântico! –, eu aqui a pensar nas ideias e nas histórias impressas em papel para os lixar, eu a pensar que a matéria que nos faz ser medíocres é exatamente a mesma que nos faz ser extraordinários – o medo de perder o lugar ao sol. Nada mais. Toda a gente tem medo de perder o lugar ao sol e, por isso, todos têm medo de quem se senta ao lado, até mesmo na igreja.
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Em viagem é impossível fazer amor. Já experimentei e não consegui. É preciso ficar muito tempo no sítio que se visita – ou seja, é preciso terminar a viagem – até que a inquietação nos abandone e deixe livres para o sexo. Estou a falar de sexo à maneira, não a despachar, porque a despachar vale tudo – qualquer lugar serve, qualquer hora é perfeita. A inquietação é como um vírus. Se não nos matar enquanto dura, só nos resta esperar que vá embora e então é possível fazer amor. Já agora, devo dizer que a quantidade de dias necessária em cada lugar para nos libertar para o sexo depende de várias coisas, mas raramente do sítio em si.
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Eu estava a escrever uma mensagem no telemóvel (… e então, na solidão da tarde, o meu silêncio ergueu-se sobre todas as coisas e o teu nome ecoou na minha alma…) e havia um carro estacionado em cima do passeio do outro lado da rua e esse carro dificultava a manobra dos que desciam a perpendicular e dobravam a esquina, obrigando-os a passar sobre o passeio do lado onde eu estava e eu estava encostado na ombreira duma porta a escrever a mensagem (… a vida tem o tempo, meu amor, e o tempo tem o esquecimento…) quando de repente veio um carro a grande velocidade e dobrou a esquina a grande velocidade e passou sobre o passeio a grande velocidade e eu senti o sopro da morte passar por mim a grande velocidade. Foi por pouco! Tivesse eu feito um qualquer movimento enquanto escrevia a mensagem (… de que nos servem os amigos, se não for o mal que fazemos aos outros…) e teria morrido ali. Sim, teria morrido naquela ocasião.
Fiquei tão assustado com este acontecimento que até tomei nota do dia, da hora e da rua onde ocorreu: 25 de janeiro de 2002, 16:38, Rua dos Netos.
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Não é a maldade que me aniquila, nem o conhecimento da sua existência, nem tão pouco o percurso que ela faz todos os dias dentro de mim e ao meu lado. Do mesmo modo, a bondade também não me verga, nem a consciência da sua existência, nem tão pouco o vazio que ela deixa dentro de mim e ao meu lado. Nada disto me derruba. Ódio, amor, vingança, culpa, medo – nada disto. O que me deita abaixo é qualquer coisa que vem da irrealidade. Não vem do sonho, mas da irrealidade. É algo que brota daquilo que não existe de facto, daquilo que nunca foi, daquilo que nunca há de ser e, no entanto, permanece como uma projeção luminosa de mim, do meu princípio e do meu fim no mundo.