Alteração da lei permitiria aumentar 30% os órgãos disponíveis para transplantes

O primeiro transplante, em Portugal, de um órgão vital aconteceu em Coimbra, no dia 19 de julho de 1969, feito por uma equipa liderada pelo cirurgião Linhares Furtado. Na altura, o hospital ficava na Alta da cidade.

A Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT) defende uma alteração legislativa para aproveitar órgãos de pessoas em fim de vida, estimando que isso aumentaria em 30% os órgãos disponíveis para transplante e contribuiria para reduzir as listas de espera.

“Em Portugal, não é possível colher órgãos de todos os potenciais dadores falecidos, ao contrário do que acontece noutros países com legislação mais abrangente”, adiantou à Lusa a presidente da SPT, na véspera do Dia Nacional da Doação de Órgãos e da Transplantação, que se assinala no domingo em Coimbra.

Segundo Cristina Jorge, a atividade de transplantação em Portugal ainda se confronta com “limitações legislativas”, que impedem, por exemplo, a recolha de órgãos de pessoas que estão em cuidados intensivos “em fim de vida” e sem recuperação possível.

“Estes doentes são acompanhados com dignidade até ao fim, mas a nossa legislação não permite a colheita de órgãos, ao contrário de outros países onde isso já acontece”, referiu a especialista, para quem uma alteração neste sentido poderia resultar pelo menos num acréscimo de 30% dos órgãos disponíveis para transplante.

“Eu penso que nós precisamos de caminhar nessas alterações legislativas e estamos a fazer força para isso”, salientou a médica nefrologista.

Em Portugal, a colheita só é permitida nos dadores em morte cerebral – quando o óbito foi confirmado por critérios neurológicos – e nos falecidos por paragem cardiocirculatória não controlada, em que a morte súbita foi verificada após terem sido submetidos a manobras de reanimação sem sucesso. Também o transplante de dador vivo só é possível em alguns órgãos, sendo o renal o mais comum.

Cristina Jorge adiantou ainda que, mesmo que avance a “parte legislativa, que é importantíssima”, seria necessário criar as condições para aproveitar os órgãos recolhidos, que teria de passar pelo reforço das equipas de profissionais de saúde e de meios alocados à transplantação.

Apontou o caso de Espanha, onde os dadores que morreram com critérios de paragem cardiocirculatória controlada representam já mais de metade dos órgãos recolhidos para transplante.

De acordo com a especialista, se Portugal adotasse essa alteração à lei, isso permitiria reduzir substancialmente as listas de espera, apontando o caso dos perto de 1.900 doentes que todos os anos estão em lista ativa para transplantes renais, os mais realizados no país.

Segundo referiu, com uma lista de espera que ronda os 19.000 doentes prontos para receber um rim, foram feitos no Serviço Nacional de Saúde 538 transplantes renais em 2024, o que demonstra que o número de intervenções continua a ser insuficiente para reduzir significativamente a dimensão da lista.

No ano passado, foram transplantados 932 órgãos, dos quais 71 de dadores vivos de rim, e foram recolhidos 1.083 órgãos de dadores falecidos.

Portugal tem apresentado, nos últimos anos, um aproveitamento de órgãos acima dos 80%, que Cristina Jorge salienta ser uma taxa adequada. Alguns dos órgãos que não foram aproveitados no país, por exemplo, por ausência de recetor compatível, foram enviados para Espanha, pelo que não foram descartados.

A especialista realça também que o país “continua a ser uma referência” a nível mundial na atividade da transplantação, o que atribui ao empenho dos profissionais e à colaboração dos portugueses, mas também à forma como o sistema de captação de órgãos foi desenhado.

Em 2024, Portugal foi, em termos proporcionais, o primeiro país a nível mundial com mais dadores em morte cerebral e registou-se um recorde histórico de órgãos colhidos, assim como o número mais alto de transplantes cardíacos (58) e o segundo melhor resultado de sempre de rins (538).

“De qualquer forma, ainda temos muita falta de órgãos, porque também as pessoas que falecem com estes critérios também são mais idosas e são muitas vezes mais doentes e, portanto, nem todos os órgãos que poderiam ser potencialmente colhidos ou até que são colhidos podem ser aproveitados pela qualidade inerente aos mesmos”, alertou.

Cristina Jorge salientou ainda que as equipas que se dedicam a esta atividade enfrentam “muitos constrangimentos”, uma vez que são cada vez mais os doentes que têm de ser seguidos nas unidades de saúde, após terem sido transplantados.

“Esta população de doentes transplantados vai crescendo ao longo do tempo e as equipas não crescem da mesma maneira para acompanhar este excesso de carga assistencial que nos é colocada”, referiu a presidente da SPT.

Nesse sentido, defendeu que muitos transplantados, que fazem viagens longas só para fazerem análises ou exames, poderiam ser seguidos próximos da sua área de residência, o que “ainda não é possível hoje em dia”.

“Até o seguimento dos doentes podia ser, muitas vezes, por telemedicina”, preconizou Cristina Jorge, para quem o esforço para assegurar a qualidade de acompanhamento dos doentes “ainda tem sido possível” através de “profissionais que trabalham nesta área e que são, no geral, muito dedicados, resilientes e que também precisam de ser acarinhados e reconhecidos”.

Em Portugal, podem ser dadores de órgãos todos os cidadãos que não se inscrevam no Registo Nacional de Não Dadores (RENNDA). Ou seja, de acordo com a legislação nacional, todos podem ser considerados potenciais dadores, desde que não expresse oposição à dádiva no RENNDA.

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